História da pesca e do consumo de bacalhau em Portugal - breve introdução

Este artigo acerca da antiga seca do bacalhau de Lavadores inicia-se com uma abordagem acerca da história da pesca e do consumo do bacalhau em Portugal e das políticas que foram sendo adoptadas para este sector. No post seguinte fala-se propriamente da história do secadouro de Lavadores e do processo de secagem do bacalhau. 



A pesca do Bacalhau até ao Estado Novo

O consumo de bacalhau (Gadus Morhua) faz parte da dieta dos portugueses desde, pelo menos, a Idade Média, sendo conhecidos tratados, datados do século XIV, em que Portugal trocava sal por bacalhau com a Inglaterra. 



Bacalhau (Gados Morhua). Imagem retirada do site Medium

Datam do século XVI, porém, os primeiros registos de barcos portugueses envolvidos na pesca do bacalhau na Terra Nova, região situada na costa ocidental do Canadá e onde se encontram os grandes "bancos" deste peixe, "(...) imensas plataformas submarinas a pequena profundidade onde o bacalhau se concentra aproveitando o plâncton, as pescadas e a lula (...)" (GARRIDO, 2010: 26)

A vermelho pode-se distinguir a Terra Nova. Imagem retirada do site Arma Terra Nova

De facto, constata-se que nessa época eram mais os barcos de origem portuguesa envolvidos na faina do bacalhau do que os proveniente de outras nações, como os ingleses, espanhóis ou franceses. Portugal era já então um importante mercado para este produto. 
Segundo Álvaro Garrido, "(...) a escassez de pão resultante das crises de produção cerealífera nos campos e, por certo, a acção das prescrições religiosas do jejum e abstinência, ajudaram a fixar no mundo mediterrânico e cristão a tradição multissecular do consumo de bacalhau salgado e seco (...)" (GARRIDO, 2010: 31,32) 
O processo de salga e de secagem tem como objectivo eliminar uma grande percentagem de água do bacalhau, assim neutralizando a acção de enzimas e bactérias que, de outro modo, iriam concorrer para a deterioração do produto. Ao permitir conservar as propriedades do bacalhau por um periodo alargado de tempo, a salga e a secagem do bacalhau tornaram possível a expansão do seu consumo muito para lá do seu território de origem, como é o caso do nosso país.



Aspecto do bacalhau salgado seco. Imagem retirada do site Jimo.pt


Enquanto alimento, o bacalhau é extremamente nutritivo e rico em proteinas, tendo historicamente complementado a dieta dos povos do sul da Europa de uma forma bastante eficaz. 
"A carne de bacalhau não tem, virtualmente, gordura (0,3 %) e é constituída por mais de 18 por cento de proteínas, o que é uma percentagem invulgarmente elevada, mesmo num peixe. E quando um bacalhau é seco, mais de 80 por centro da sua carne, que é água que se evaporou, torna-se proteína concentrada - quase 80 por cento de proteína" (KURLANSKY, 2000: 36) 
O progressivo declíneo do controle dos mares por parte das frotas ibéricas, em razão da ascensão de outros poderes imperiais, como o inglês, determinou que até praticamente ao século XIX não existisse pesca do bacalhau com tripulações portuguesas.  O bacalhau salgado seco continuava a ser muito consumido no nosso país, só que o seu comércio era agora controlado essencialmente pelos ingleses.
Só a partir de 1830, quando foi elaborada legislação fiscal conveniente aos armadores portugueses, reuniu a frota portuguesa condições para se desenvolver, mesmo assim recorrendo a barcos e tripulações inglesas. A sua vigência foi, no entanto, breve, o que determinou que o número de navios empregue na faina maior tenha oscilado ao sabor das mudanças legislativas que a partir daí foram sendo operadas, nem sempre favoráveis à indústria. Em 1896, para se ter uma ideia, existiam apenas 12 veleiros portugueses empregues na pesca do bacalhau. (MOUTINHO, 1985) 
Em 1901, contudo, é dado um importante impulso fiscal para o desenvolvimento da actividade de forma mais sustentada, estabelecendo-se um imposto de 12 réis por quilo de pescado, quando anteriormente, para as novas embarcações que queriam entrar ao serviço, estava previsto um imposto de 39 réis por quilo. Reflexo disso mesmo, em 1924 eram já 65 os veleiros que demandavam os bancos da Terra Nova e com uma tonelagem maior relativamente ao que sucedia no início do século. (MOUTINHO, 1985)

A crise das subsistências  

A partir da crise financeira de 1890-1892, que culminou na bancarrota do país, e da instabilidade da I República, agravada pela I Guerra Mundial, o país viu-se confrontado com periodos de elevada inflação, desvalorização da moeda, encarecimento das importações, défice comercial e dificuldades do tesouro em garantir as importações de bens essenciais. Em muitas alturas a população portuguesa, sobretudo a pertencente às classes mais humildes, atravessou periodos de carestia alimentar. Foi a chamada crise das subsistências. 
Relativamente ao fiel amigo, o problema não estava no facto do bacalhau não chegar ao país. Ele chegava. O problema é que a inflação e a debilidade da moeda nacional tornavam-no caro para as classes populares, situação que fazia perigar o papel que tradicionalmente o bacalhau desempenhou enquanto complemento da dieta dos portugueses.
Para além disso, os armadores portugueses encontravam-se numa situação bastante precária e nas mãos dos países exportadores que, por alturas da chegada dos veleiros portugueses das campanhas do bacalhau, e para se protegerem da concorrência nacional, inundavam o mercado português, forçando temporariamente a queda dos preços e colocando em causa assim a viabilidade económica das campanhas nacionais. 
Para se ter um ideia, se em 1911 o bacalhau proveniente de tripulações portuguesas representava 11% do consumo nacional, em 1930 já só satisfazia 8% desse consumo, significando uma importante saída de divisas do país.
"Lembremos, por exemplo, que em 1916 foi despendida uma verba de 4.789.129$00 na importação deste produto e que 7 anos depois este valor subia para 123.775.924$00. Quer dizer, que neste período a saída de divisas aumentou quase 30 vezes." (MOUTINHO, 1985: 69)
O abastecimento nacional deste produto estava, portanto, e em grande parte, na mão das potências estrangeiras, que manipulavam o mercado de acordo com as suas conveniências, fazendo perigar o abastecimento regular do bacalhau às classes com menos possibilidades económicas.   
É este quadro, enfim, que parece estar na origem da legislação corporativa e de feição anti-liberal que o Estado Novo desenhou para o sector do bacalhau, à semelhança, aliás, do que adoptou para o sector do arroz. 

A Política Intervencionista do Estado Novo

A filosofia por detrás dessa política baseou-se numa forte intervenção estatal no mercado que possibilitou a arbitragem dos vários interesses em questão: desde os armadores, passando pelos pescadores, os importadores e, finalmente, os consumidores. O objectivo era incrementar a produção nacional de bacalhau, o que permitiria empregar uma vasta mão de obra nacional (não apenas de pescadores provenientes de todo o litoral português mas também, por ex, de operários da construção naval) aumentar os lucros dos armadores, tornando a sua actividade sustentável, e assegurar o consumo a preços acessíveis aos consumidores. 
Para a prossecução desses objectivos é criada em 1934 a Comissão Reguladora do Comércio do Bacalhau, na sequência, aliás, da grande depressão de 1929 que afundou os preços do bacalhau nos mercados internacionais. A CRCB foi o eixo a partir do qual se organizou todo este sector económico. Uma das suas principais atribuições era a de definir, com base numa estimativa das necessidades de consumo, as quantidades de bacalhau nacional e estrangeiro que podiam ser vendidas no mercado nacional em termos anuais.



O edifício da antiga sede da Comissão Reguladora do Comércio do Bacalhau em Lisboa. Imagem retirada do site  homify.pt

Desta forma, foram beneficiados os armadores portugueses, que, entre 1934 e 1966 ficaram, em termos médios, com 60% do mercado nacional. Anos houve até, como o de 1954, em que o consumo nacional dependeu em cerca de 88% do bacalhau pescado pelos navios portugueses.
No mesmo ano de 1934 é criado o Grémio dos Importadores Armazenistas de Mercearia, a única entidade que podia comprar o bacalhau dos armadores portugueses destinado ao consumo do país e a importar bacalhau no mercado internacional, deixando os importadores de o poder fazer individualmente, já que a inscrição no Grémio era obrigatória. 
A venda do bacalhau aos importadores armazenistas por parte dos armadores portugueses era feita com base num preço mínimo por campanha, definido pela CRCB, compensador para a indústria portuguesa, reduzindo assim o risco da sua actividade.
"Procurando conter as tensões entre armadores e importadores e impor a harmonização dos respectivos interesses, o Estado garante aos primeiros a venda do peixe capturado e impõe aos segundos a sua aquisição com base num preço mínimo fixado por campanha. Quer isto dizer que apenas se consentia a importação a quem comprasse «bacalhau nacional». Era este o primeiro a ser distribuído e consumido." (GARRIDO, 2010: 124)
O mercado remanescente seria abastecido através de importações do bacalhau pelo Grémio aos países exportadores que, através de acordos bilaterais, tinham que permitir o acesso de produtos portugueses aos seus mercados a preços competitivos, caso do vinho ou das conservas.
Os importadores distribuiam depois o bacalhau pelos armazenistas e estes, por sua vez, pelos retalhistas. O bacalhau nacional e o estrangeiro eram vendidos pelos importadores a preços semelhantes, procurando-se assim salvaguardar os consumidores. Os importadores eram depois compensados, por causa da diferença existente entre o preço pelo qual adquiriam o bacalhau estrangeiro e aquele pelo qual o podiam vender, através do Fundo de Compensação, criado em 1947 pelo governo de forma a subsidiar os importadores e assim controlar a inflação dos preços. 
Em 1935 é ainda criado o Grémio dos Armadores de Navios de Pesca de Bacalhau, que reunia numa corporação os proprietários das embarcações e das secas do bacalhau e cujas receitas provinham de uma taxa cobrada aos sócios sobre o bacalhau verde por eles pescado. 
O dinheiro assim arrecadado era destinado, entre outros fins, para um fundo cooperativo, instrumental na concessão de crédito aos armadores para os seus planos de renovação da frota, e para um fundo de previdência social, através do qual foram construídos diversos bairros económicos, conhecidos como bairros de pescadores, assim como escolas, cantinas ou serviços de saúde. Esta obra social garantia as condições mínimas para a existência de mão de obra disponível para embarcar todos os anos nas campanhas do bacalhau. 
O edifício de politicas corporativas dedicadas ao sector do bacalhau contou ainda com a criação de mais duas organizações e a que só se podiam aceder os armadores que estivessem inscritos no respectivo grémio. 
A primeira, nascida em 1936, foi a Mútua dos Navios Bacalhoeiros. Esta mútua era responsável por celebrar contractos de seguro que cobriam o risco dos navios e dos pescadores neles embarcados, instituição bastante útil dado o considerável número de embarcações que afundavam.
Por útimo, foi ainda criada, em 1938, a Cooperativa dos Armadores de Navios de Pesca do Bacalhau. Esta tinha por finalidade adquirir todos os materiais necessários para as campanhas do bacalhau junto dos diversos fornecedores, como o sal, combustível ou o isco, por exemplo. A concentração das compras na cooperativa permitu baixar consideravelmente os preços destes materiais para os armadores. 
Em síntese, ao garantir preços mínimos de venda aos armadores e preços subsidiados aos consumidores, pelos quais os importadores eram compensados, a política fortemente intervencionista do estado salvaguardava a saúde económica dos empresários e o acesso ao produto a preços controlados aos consumidores.
0 crescimento sustentado da produção nacional teve reflexos óbvios no número de embarcações envolvidas na pesca do bacalhau. Assim, entre 1934 e 1967 foram construídos 83 navios para a frota portuguesa. Se em 1934 a frota portuguesa era composta por 34 navios, em 1958 eram já 77. 
Progressivamente esta frota bacalhoeira seria renovada e os lugres ou escunas, navios à vela, iriam dar lugar aos modernos arrastões. A SNAB, como veremos mais à frente, desempenhou um importante papel na renovação da frota. Apesar desse movimento, em 1966 ainda existiam 10 veleiros em funcionamento.  



O Lugre "Amizade Primeiro". Imagem retirada do blog Navios e Navegadores


A vida nos barcos

A pesca do bacalhau era uma actividade de uma durez atroz. As campanhas eram sazonais e duravam cerca de 6 meses, geralmente de Abril até Outubro, podendo às vezes estender-se até ao mês de Novembro. 
Os grandes veleiros, como as escunas ou os lugres, demandavam os bancos da Terra Nova e, principalmente a partir dos anos 30 do século XX, a costa da Groenlândia. 



Lugre "Oliveirense", amarrado a um cais de Gaia para descarregar bacalhau com destino à seca de Lavadores. Imagem retirada do blog Navios à Vista










Cada uma destas grandes embarcações transportavam em média cerca de 12 a 18 dóris, embarcações mais pequenas, com cerca de 5 metros de comprimento e até 100 quilos de peso.




Dóri carregado de bacalhau. Imagem retirada do blog Mar de Viana


Era nestas dóris, manejadas com recurso aos remos ou à vela, que os homens, 1 por barcaça, se afastavam do navio mãe para ir pescar o bacalhau à mão e à linha. Cada dóri podia carregar cerca de 300 kg de bacalhau. 
Segundo Álvaro Garrido, as dóris afastavam-se por vezes cerca de 2 a 3 milhas (entre 3 a 5 km) do navio mãe e a jornada a bordo destes pequeno botes durava cerca de 8 a 10 horas por dia. Depois do regresso estes pescadores ainda tinham que trabalhar no lugre, ajudando a escalar e a salgar o bacalhau.  No total, as jornadas de trabalho podiam atingir as 18 ou mesmo as 20 horas diárias. (testemunho de Álvaro Garrido obtido no documentário da RTP - Faina maior: a pesca do bacalhau)



Dóris. Imagem retirada do site Clube Vinhos Portugueses

Com o tempo os armadores vão começar a substituir os veleiros por modernos arrastões, capazes de atingir maiores índices de produtividade. Assim, se em 1946 encontravam-se ao serviço 6 arrastões, em 1951 eram já 20. Diga-se que a Sociedade Nacional dos Armadores de Bacalhau, criada em 1940 e dona da seca do bacalhau de Lavadores, vai desempenhar um papel fundamental nesse movimento de modernização da frota nacional.



O arrastão "Álvaro Martins Homem" da SNAB. Imagem retirada do blog Navios e Navegadores

A SNAB havia sido fundada em 1940 num contexto em que o governo pretendia aumentar a produtividade do sector através do incremento do uso de arrastões na pesca do bacalhau. A sociedade dos arrastões, como ficou então a ser conhecida a SNAB, seria instrumental para a prossecução desse objectivo governamental já que tinha por missão dedicar-se à pesca do bacalhau através do recurso aos modernos arrastões, os quais mandaria construir ou alugar. 
Nesse sentido, a inscrição na SNAB era obrigatório para todos os armadores inscritos no Grémio dos Armadores de Navios de Pesca de Bacalhau tendo sido o fundo corporativo desse mesmo grémio que dotou de meios financeiros a SNAB.  Diga-se que ao longo da sua vida a SNAB chegou a armar mais de uma dezena de arrastões. (GARRIDO, 2010)



O arrastão "João Álvares Fagundes" da SNAB. Imagem retirada do blog  Navios e Navegadores

Para além da pesca a SNAB dedicava-se ainda à transformação do bacalhau verde em seco nos secadouros que possuia em Lavadores, São Jacinto e Alcochete, razão pela qual construiu a seca de Lavadores. 
Apesar da renovação da frota, iniciada por volta de 1940, o sistema de pesca à linha, nas dóris, vai sobreviver até ao 25 de Abril de 1974, muitas vezes com recurso aos lugres com motor. 
Como lembra Mário Moutinho, "Não tivessem os armadores à sua disposição uma população com um nível de vida tão baixo, que para sobrevivier aceitava salários de fome e condições de trabalho desumanas, talvez se tivessem decidido a modernizar as suas frotas, por forma a obter uma rentabilidade à custa de uma melhor produtividade e não das condições de produção. Para quê investir em métodos mais modernos, se continuando a construir mesmo para a pesca à linha se conseguia lucros proporcionais?" (MOUTINHO, 1985; 108) 

A Crise

O crescimento sustentado ao longo das décadas da pesca portuguesa do bacalhau vai-se defrontar com dois grandes desafios. Em primeiro lugar o fim da liberdade de pesca nos mares e, em segundo, a sobrepesca. 
Relativamente ao primeiro, vinha já desde os séculos passados a convenção que determinava que o mar territorial de cada país, aquele sobre o qual detinha soberania, extendia-se apenas até às 3 mihas náuticas. A partir daí o mar era de acesso livre. Ora, a partir da II guerra mundial, este conceito vai começar a ser desafiado, pretendendo alguns países aumentar a sua área de influência exclusiva para lá das 3 milhas, o que colocava em causa o princípio do mar livre e o acesso de Portugal aos bancos da Terra Nova e da Gronelândia. 
Em, 1958, a Convenção sobre o Mar Territorial da ONU tornou possível que os paises pudessem reclamar como seu mar territorial um espaço até às 12 milhas, ao fixar a largura da zona contígua dos paises costeiros até essas mesmas 12 milhas. A Dinamarca, com soberania sobre os bancos de pesca da Gronelândia, vai aplicar esse princípio, de forma unilateral, em 1963, estabelecendo, contudo, um periodo transitório até 1973, do qual os portugueses beneficiaram. 
Em 1970 foi a vez do Canadá estender o seu mar territorial das 3 para as 12 milhas. A partir dos anos 70, e sem acesso aos grandes bancos de bacalhau, a indústria portuguesa começa a entrar numa profunda crise. 
"O único sítio deixado aos Ibéricos era um canto do grande banco e toda a Calota Flamenga, um histórico pesqueiro de bacalhau (...) em águas internacionais. Quer os portugueses quer os espanhóis retiravam quantidades significativas desta zona, até 1986, quando so canadianos decidiram negar aos barcos estrangeiros a pesca nos bancos exteriores e a utilização de St. John´s para adquirir géneros e fazer reparações" (KURLANSKY, 2000: 172) 
Já desde os finais dos anos 50, contudo, se começam a fazer sentir os primeiros sinais de declíneo da frota pesqueira portuguesa. Tal ficou a dever-se aos efeitos da sobrepesca sobre os stocks de bacalhau existentes. 
"Nessa altura, a capacidade da frota está ainda a crescer, mas os navios regressam dos bancos com os porões pouco carregados; em média trazem apenas 70-75% da capacidade de carga. Significa que o rendimento de exploração é escasso e que se verifica um subrapoveitamento da capacidade de pesca. A produtividade por navio acusa então números bastante baixos: cai do índice 144, em 1955 - ano de mais elevada produtividade -para o índice 95 em 1959, ano de maior escassez de peixe nos pesqueiros do Atlântico norte." (GARRIDO, 2010: 150)
Sobrepesca e extensão dos mares territoriais foram, portanto, as causas evidentes do declíneo da pesca do bacalhau portuguesa. A partir daí, os diversos actores com interesse neste mercado, a começar pelos armadores, começam a perder dinheiro. 
A SNAB, por exemplo, proprietária da Seca do Bacalhau de Lavadores, reflecte muito bem nos seus relatórios e contas anuais esta situação. A partir do ano de 1959, ano em que a SNAB se queixa da campanha pobre em capturas, há diversos exercícios que terminam em défice. Em 1965, por exemplo, os resultados negativos são atribuídos ao decréscimo do coeficiente de capturas e à desactualização dos preços do bacalhau relativamente ao agravamento sentido nos custos do aparelhamento dos navios e aos encargos sentidos com as instalações em terra. (SNAB, 1965)
No relatório de 1970 o cenário é já de crise generalizada, atribuível não apenas ao decréscimo do índice de capturas mas também ao dificil recrutamento de mão de obra adestrada, ao aumento dos salários, assim como do custo do sal, do combustível, dos seguros das frotas e do custo das reparações. (SNAB, 1970)
Relativamente aos custos da mão-de-obra, diga-se que numa época de grande emigração em Portugal, era cada vez mais árduo encontrar quem se sujeitasse a trabalhar nas dóris em situação de verdadeira exploração laboral.
Os relatórios de 1971 e 1972 alertam para o crescimento das zonas interditas à pesca devido à questão da nova legislação para as águas territorias. O relatório e contas de 1973 apresenta uma nova queixa, "As medidas restritivas que têm sido adoptadas com vista a fazer diminuir o desgaste das reservas piscícolas afecta inevitavelmente a produtividade dos navios". (SNAB, 1973: 6) A SNAB continua também a queixar-se da interdição do acesso dos navios portugueses a cada vez maiores áreas de exploração. 
Os relatórios de 1974 e 1975 prosseguem na mesma linha de crise, com abundantes queixas acerca da diminuição dos stocks, da subida dos custos para o apetrechamento dos navios, e do alargamento das zonas exclusivas dos paises costeiros.
Reflexo deste cenário de crise são as capturas de peixe que, entre 1967 e 1973, sofrem uma redução de 50%, de 260 mil toneladas para 130 mil toneladas. (MOUTINHO, 1985) 
Para além de todos estes problemas, outro começou a emergir na tipologia de comércio do bacalhau a nível internacional e que se prende com o mercado do peixe congelado, para onde agora os paises exportadores desviavam boa parte da produção, o que deixava ainda mais depauperado o abastecimento nacional. 
Começou a perceber-se que o controlo dos preços estava agora a ser um entrave, nomeadamente para os armadores nacionais, com um volume de pescas insuficiente para os custos da sua operação. 
Neste contexto, também o Fundo de Abastecimento, através do qual eram subsidiados ao consumidor os preços do bacalhau estrangeiro, mas cujas receitas eram obtidas através da taxação do bacalhau nacional, agora cada vez mais diminuto, chega a uma situação insustentável, com graves problemas de tesouraria, não deixando aos responsáveis políticos de então outra opção que não seja a de liberalizar os preços e abolir o condicionamento das importações.
Em 1967, por fim, é decretada a liberalização das importações e dos preços, acabando com o edifício político e institucional que havia presidido ao sector do bacalhau desde os idos dos anos 30. Com os "bancos" de bacalhau fechados aos armadores portugueses, a liberalização das importações e dos preços oferece-se como a única medida capaz de garantir o aprovisionamento deste peixe por parte do país. O mundo de livre acesso aos mares e de utilização intensiva de mão de obra em que assentou a premissa de desenvolvimento da indústria portuguesa tinha acabado e, como consequência, também o edifício político que havia sido erigido para sua protecção. 
"Se o modelo de reorganização do sector do bacalhau se erguera, nos anos 30, por influência da conjectura do mercado internacional, seria, em parte, por força das novas condições de inserção nesse mesmo mercado que a obra de fomento da «grande pesca» começaria a desmoronar. Coincidência ou não, o princípio do fim da pesca do bacalhau, assinalado, em 1967, pela liberalização das importações e dos preços no mercado interno, conjuga-se no tempo com o afastamento político de Oliveira Salazar." (GARRIDO, 2010: 151)

BIBLIOGRAFIA



KURLANSKY, Mark - O Bacalhau: biografia do peixe que mudou o mundo. Lisboa: Terramar, 2000. (Colecção Pequena História; 13)

MOUTINHO, Mário - História da pesca do bacalhau: por uma antropologia do fiel amigo. Lisboa: Editorial Estampa, 1985. (Colecção Imprensa Universitária; nº 40)

GARRIDO, Álvaro - O Estado novo e a campanha do bacalhau. Lisboa: Temas e Debates, 2010.

SOCIEDADE NACIONAL DOS ARMADORES DE BACALHAU - Relatório e contas de 1940. Lisboa: Papelaria Luso-Brasileira, 1941. [foram consultados todos os relatórios e contas entre os anos de 1940 a 1975]


ROSAS, Fernando - Faina maior: a pesca do bacalhau. Documentário produzido pela Rádio Televisão Portuguesa em 2014. Parte integrante da série História a História. (ensina.rtp.pt/artigo/faina-maior-pesca-bacalhau/)

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