No artigo anterior referi que Miguel Torga, entre outros escritores, era visita frequente da casa que o antropólogo António Jorge Dias tinha em Lavadores. Aproveitando a sua estadia à beira mar, Miguel Torga preencheu diversas páginas do seu diário nessa localidade da freguesia de Canidelo entre os anos de 1945 e 1946. São esses escritos que a seguir se reproduzem.
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Fotografia de Miguel Torga obtida no site Citador |
Lavadores, 23 de Março de 1945
NIRVANA
Nú, como Apolo, no areal salgado.
(A roupa era o pudor da covardia).
E agora cresçam versos a meu lado:
Estou deitado
Num lençol de poesia!
(TORGA, 1995: 263)
Lavadores, 17 de Julho de 1945
PERGUNTA
Duna que o vento ergueu, monte de vento,
Onde tudo que nasce é movediço:
Versos aqui?, ou sigo o movimento,
Sou mais uma areia ao teu serviço?
Duna em que sou arado
À procura da terra da firmeza:
Versos aqui?, ou vou melhor calado,
Cheio de desespero e de certeza?
(TORGA, 1995: 268)
Lavadores, 8 de Agosto de 1946
Estou no areal a ler Freud, e, nem de propósito, uma nudista exibe na minha frente um belo corpo de Vénus. Passeia pela praia fora num passo travado de deusa, levando à frente, com a plenitude da Vitória de Samotrácia, dois seios brancos, duros e redondos. No Freud, o pansexualismo explica-me esta presença estranha, física e inacreditável, diante dos olhos deslumbrados e objectivos. Mas, na realidade, o mistério permanece. Como o mar, que sei feito de água salgada, e não entendo, também esta nudez, que sei feita de libido, me continua incompreensível. Há uma vida nas ondas que transcende o vento que as motiva, assim como há uma beleza nas formas que transcende o instinto que as desnuda. As teorias de Freud estão certas; mas o mito que fez nascer Vénus da espuma, também está.
(TORGA, 1995: 313, 314)
Lavadores, 10 de Agosto de 1946
O mar, Breughel, Bach, amigos, e dez reis de saúde. Chegará?
(TORGA, 1995: 314)
Lavadores, 11 de Agosto de 1946
CONDIÇÃO
A onda vem, lambe o areal e parte;
A mágoa vem, morde o meu corpo e fica;
A mágoa ateima, ateima, e quer ser arte,
A onda envergonhou-se de ser bica.
E nem a areia seca se revolta,
Nem o meu corpo pode protestar;
A onda anda no mar, à solta,
E a mágoa já tem casa onde morar.
Forças sem coração e sem governo
Jogam no pano que lhes apetece;
Pobre de quem padece
O seu capricho eterno...
(TORGA, 1995: 314)
Lavadores, 12 de Agosto de 1946
Trinta e nove anos. Meia vida passada, se isto se for aguentando, tomba daqui, tomba dali. E tudo por fazer! Comecei tarde, sem nenhuma preparação, e com defeitos horríveis, que tenho ido limando pouco a pouco, mas que resistem como fortalezas. Nasci afirmativo demais, puritano demais, uno demais, apesar duma timidez confrangedora, duma aceitação natural da volúpia e duma dispersão aflitiva a cada instante. Tenho medo dum polícia e sou capaz de enfrentar um exército; passo a vida a praticar virtudes que proíbo terminantemente aos outros; escrevo um poema, a dar uma consulta. De maneira que nunca consegui encontrar aquele equilíbrio criador onde julgo existir o pomar das grandes obras. Debato-me entre forças contraditórias, e ao cabo de cada livro sinto-me insatisfeito e culpado como um pecador que não cumpriu bem a sua penitência. Não tenho ambições fora da arte, e, dentro dela, só desejo conquistar a glória de a ter servido humildemente e totalmente; mas não consegui ainda dar-lhe tudo, jogar a vida e a morte por ela. Para isso era preciso calcar aos pés o homem civil que sou, e não posso. Necessito de ter as minhas contas em dia como qualquer mortal honrado, e afligem-me os assuntos do mundo como casos pessoais. Também tenho afectos. E a trama de deveres e apegos, embora redima um homem do seu egoísmo nativo, rouba-lhe força criadora. Abandono tudo para correr a casa dum amigo que está com dor de dentes, e passo uma noite em claro porque operei um dente, e ele pode ter uma hemorragia. Mas a minha fraqueza maior é não poder desprezar ninguém, mesmo os próprios inimigos. São meus semelhantes, apesar de tudo, e eu não consigo descrer do homem, seja ele como for. Em vez de os esquecer, trago-os no pensamento. Sofro por eles. A minha grande alegria é admirar os outros, e procuro encontrar em cada um as linhas positivas do seu caminho. Afinal somos todos elos de uma grande corrente, e é pelos ferrugentos que ela pode quebrar. Aflijo-me, solidário com a sua humanidade, que gostava de ver mais generosa, sem reparar que o tempo desaparece, alheio às razões que impedem a semente de germinar. E tudo por fazer! Mas quê! Quando devia estar a ler os clássicos, andava a capinar café; quando me apetece escrever, estou a curar anginas; e quando é preciso salvar o artista, ponho-me a salvar o homem.
(TORGA, 1995: 314, 315)
Lavadores, 14 de Agosto de 1946
ODE
Eis-me nu e singelo!
Areia branca e o meu corpo em cima.
Um puro homem, natural e belo,
De carne que não peca e que não rima.
A linha do horizonte é um nível quieto;
As velas, de cansaço, adormeceram;
E penas brancas, que eram luto preto,
Perderam-se no azul de onde vieram.
Sol e frescura em toda a grande praia
Onde não pode haver agricultura;
Esterilidade limpa, que não caia
De pão e vinho a cósmica fartura.
Dançam toninhas lúdicas no céu
Que visitam ligeiras e felizes;
Uma força sonâmbula as ergueu,
Mas seguras à seiva das raízes.
Nem paz, nem guerra, nem desarmonia;
O sexo alegre, mas a repousar;
Um pleno, largo e caudaloso dia,
Sem horas e minutos a passar.
Vem até mim, onda que trazes vida!
Soro da redenção!
Vem como o sangue doutra mãe pedida
Na hora de dar mundo ao coração!
(TORGA, 1995: 316)
Bibliografia
TORGA, Miguel - Diário: I-VIII. Coimbra: s.n, 1995.
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