O artigo que a seguir se reproduz, da minha autoria, foi originalmente publicado no Boletim da Associação Cultural Amigos de Gaia, nº 84 de Junho de 2017. O texto vem aqui acompanhado de um maior número de fotografias que entretanto consegui descobrir.
Celebraram-se neste ano de 2017 os 110 anos do nascimento de António Jorge Dias, o mais importante antropólogo português do século XX, com uma obra vastíssima, tanto no campo científico como institucional. Nascido no Porto em 31 de Julho de 1907 e falecido em Lisboa no dia 5 de Fevereiro de 1973, Jorge Dias residiu alguns anos em Lavadores, lugar confinante com o mar pertencente à freguesia de Canidelo.
O antropólogo António Jorge Dias. Fotografia cedida por sua bisneta, Rita Pestana |
ESPÍRITO DE VAGABUNDO
Embora nascido na cidade invicta e proveniente de uma família de relevo da burguesia portuense, Jorge Dias desde cedo se sentiu animado por uma forte atração pela natureza e pelos modos de vida rurais. Essa paixão levou-o a percorrer, nas férias de verão, e numa época em que ainda frequentava o liceu, o interior norte do país na companhia do seu amigo Fernando Galhano, explorando em conjunto as serras do Soajo, do Gerês, da Peneda e do Larouco, assim partilhando uma entusiasta curiosidade etnográfica.
Jorge Dias e Fernando Galhano numa serra portuguesa. Imagem obtida através do artigo de João Leal, "A energia da Antropologia: seis cartas de Jorge Dias para Ernesto Veiga de Oliveira". |
Numa carta dirigida a Ernesto Veiga de Oliveira, datada de 20 de Junho de 1939, numa altura em que trabalhava na Alemanha, reconhece,
«Eu não aturo isto muito tempo. A cultura é muito bonita, as pessoas são muito ilustradas, há muita arte, etc. Mas falta-me o essencial: a vida livre e plena das montanhas da minha terra. (...) Eu estou agora convencido, de que a única coisa para mim verdadeira é a vagabundagem. (...) Estou ávido por me deitar pelos montes fora, a beber a luz, porco, rôto, selvagem. Vai-me saber espantosamente bem ter uns mêses consigo. Havemos de nos asselvajar até à medula.» (LEAL, 2008: 507)
Esse espírito de vagabundo fizera com que ele se juntasse a um circo itinerante na adolescência, antes ainda de terminar o liceu, um facto lembrado por Ernesto Veiga de Oliveira (OLIVEIRA, 1974) e confirmado pela Dr.ª Isabel Pestana, sua neta, a quem entrevistamos para a realização deste artigo.
Licenciado em Filologia Germânica, pela Universidade de Coimbra, seguiu em 1938, um ano antes do início da II guerra mundial, para a Alemanha, onde foi leitor de português nas Universidades de Rostock (1938-39), Munique (1939-42) e Berlim (1942-44), chegando posteriormente a desempenhar as mesmas tarefas nas Universidades de Santiago de Compostela (1944-46) e Madrid (1946-47). Na Alemanha conheceu Margot Dias (1908-2001), sua futura mulher (em segundas núpcias) e inseparável companheira de investigação.
O meio universitário alemão não estava imune aos ideais de pureza e de superioridade da raça ariana, tão caros ao regime nacional-socialista que então estendia a sua sombra perversa sobre a nação germânica. Apesar disso, Jorge Dias soube sempre salvaguardar a sua independência de espírito, distanciando-se criticamente do perigoso ideário que contaminava diversos intelectuais e professores da época. Não resistimos aqui a citar um pequeno excerto de uma conferência pronunciada por Jorge Dias na reitoria da Universidade do Paraná, Brasil, no ano de 1953, e onde a clareza e pertinência dos seus argumentos contra as teorias da superioridade racial são bem evidentes:
«A teoria da superioridade de certas raças é um mito. (...) Olhemos para o Velho Mundo! As grandes civilizações não surgiram ao mesmo tempo. A Babilónia. o Egipto, a Índia e a China tinham atingido um enorme desenvolvimento, enquanto a Europa era bárbara. Quando os gregos elaboraram uma das mais belas civilizações de todos os tempos, onde a cultura do espírito atingiu um dos maiores expoentes, os seus vizinhos do Norte eram meros bárbaros, numa fase de cultura rudimentar. Onde estava então a raça superior? Contudo, é própria dos homens essa tendência egocêntrica de se considerarem o centro do Mundo e esquecerem o desenrolar do tempo. (...) A humanidade é um todo, animado das mesmas necessidades, aspirações e ansiedades. Por isso, quando um povo atinge o seu apogeu e se julga o melhor de todos os tempos e um eleito da criação, comete um dos erros mais imperdoáveis. Seria o mesmo que se um homem na força da vida insultasse um velho fraco , que, contudo, na sua plenitude tinha sido tão forte ou mais do que ele, ou uma criança cujas forças vagamente se adivinham» (DIAS, 1990: 130-131)
A verdade, contudo, é que o meio académico alemão viria a ter, sobre outro aspeto, uma influência determinante na vida de Jorge Dias. Os germânicos possuíam uma larga tradição no campo da pesquisa etnográfica e etnológica, proveniente já do século XVIII, sendo natural que a universidade alemã, na primeira metade do século XX, albergasse um importante legado de estudos científicos nessa área. O contacto com essa realidade fez Jorge Dias perceber que podia conciliar o gosto e curiosidade que sentia pelo mundo rural e pelo campesinato com uma profissão, a de antropólogo, que lhe oferecia, «(...) uma possibilidade única, porque nos dá liberdade, para andarmos mêses pelas serras e campos, com a certeza de ter o pão garantido e um lugar na sociedade dos homens.» (LEAL, 2008, 509)
Foi, assim. na Universidade de Munique, em 1944, em plena II Guerra Mundial, que defendeu a sua tese de doutoramento em etnologia, com um trabalho sobre a aldeia de Vilarinho da Furna, um dos seus estudos mais conhecidos e posteriormente publicado em Portugal.
PATRONO DA ANTROPOLOGIA CULTURAL
Regressado a Portugal em 1947, Jorge Dias foi o responsável, a convite de António Mendes Correia, pela criação de uma secção de etnografia no Centro de Estudos de Etnologia Peninsular do Porto, uma instituição que funcionava na órbita do Instituto de Antropologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Porto.
Foi no contexto desta instituição que Jorge Dias iniciou uma profunda reflexão crítica acerca do objeto da antropologia e das metodologias mais apropriadas para o seu estudo.
A antropologia portuguesa da primeira metade do século XX foi fortemente marcada pela antropobiologia, ou seja, pelo estudo do homem na sua dimensão física, biológica, funcional, merecendo destaque neste âmbito a Escola de Antropologia do Porto, dirigida precisamente por António Mendes Correia.
Esta faceta disciplinar teve grande alcance no meio colonial, onde diversas missões procuraram caracterizar com minúcia a dimensão física de diferentes povos indígenas, procurando fazer corresponder as suas características aos tipos de trabalho que mais se lhes adaptavam, num exercício utilitarista de evidente desumanidade.
Jorge Dias, pelo contrário, advogava o estudo do Homem na sua vertente cultural, merecendo relevo, neste contexto, os «(...) usos e costumes, as crenças, as tradições orais, a sabedoria, a língua, a música e a dança, os padrões de comportamento, os ideais de vida, o artesanato, as técnicas tradicionais, os objectos usados na vida diária, etc., etc.» (DIAS, 1990: 40). Estas realidades eram consideradas de forma holística, porque expressão de um pensamento que é fruto de uma determinada cultura que se formou em adaptação a um contexto geográfico e histórico específico. Perspetivava assim o desenvolvimento dos estudos etnológicos, ou seja, da antropologia cultural.
A descrição etnográfica, realizada de forma sistemática no terreno, seria a base do trabalho do antropólogo. Segundo Jorge Dias, «A etnografia (...) é uma espécie de primeira fase no processo do pensamento científico. A etnografia observa, analisa e descreve uma determinada cultura e a etnologia sistematiza, compara, generaliza e interpreta em termos gerais. Não há ciência propriamente dita quando se não ultrapassa a fase descritiva; a etnografia vai sempre inserir-se na etnologia. Por sua vez, não há etnologia sem etnografia, pois as generalizações só são válidas quando assentam em abundantes dados colhidos e descritos com todo o rigor objectivo» (DIAS, 1990: 21)
É com Jorge Dias, portanto, que a antropologia cultural portuguesa adquire foros de ciência, com um objeto, o Homem enquanto ser cultural, e uma metodologia de estudo bem definida, assente em aturadas recolhas etnográficas cujos resultados eram depois tratados, estudados, comparados e interpretados.
O ênfase dado à cultura revolucionou o rosto da antropologia portuguesa, permitindo que esta disciplina se reencontrasse com uma tradição de que se encontrava afastada desde a segunda metade do século XIX, época em que pontificavam figuras como José Leite de Vasconcelos, Oliveira Martins, Adolfo Coelho, Teófilo Braga, Rocha Peixoto, Alberto Sampaio ou Consiglieri Pedroso.
Como reconhece o próprio Jorge Dias, «De facto, nós, depois duma brilhante geração de etnógrafos, entre os quais se destaca José Leite de Vasconcelos, nada mais temos, senão o valor isolado de alguns homens de boa vontade, que a estes estudos têm dado o seu melhor esforço.» (DIAS, 1993, 16)
A visão de Jorge Dias concretizou-se no Centro de Estudos de Etnologia Peninsular, onde o antropólogo reuniu uma equipa de grande relevo na história desta disciplina, e no qual merecem destaque nomes como Margot Dias, Fernando Galhano, Ernesto Veiga de Oliveira ou Benjamim Enes Pereira. Todos eles contribuíram para o estudo sistemático de uma série de temáticas que eram negligenciadas até então pelas ciências sociais em Portugal, como o estudo das alfaias agrícolas, dos sistemas de armazenagem de cereais, das atividades agro-marítimas, da arquitetura tradicional, das festas e das artes populares, dos instrumentos musicais, entre muitos outros exemplos. Percebe-se, neste conjunto de investigações, a preocupação em salvaguardar o conhecimento de um mundo que se encontrava já ameaçado pela emergência de profundas transformações tecnológicas e sócio-culturais.
Não se trata aqui, porém, de um mero exercício de catalogação e descrição de determinados aspetos culturais, sejam eles ligados à cultura material ou imaterial. O fim último das investigações levadas a cabo no Centro de Estudos de Etnologia Peninsular é sempre a explicação do Homem enquanto ser cultural, ou seja, a dedução dos valores, conceitos e pensamentos que presidem às atividades do homem e de que forma se relacionam com o contexto geográfico e histórico de determinado local.
«Não se trata mais de recolhas de folclore ou de cultura material como fim em si mesmo: o Homem é considerado sobre todos os aspectos, e essas disciplinas integram-se numa Etnologia Geral que é o conhecimento global da cultura como explicação do Homem e das culturas particulares.» (OLIVEIRA, 1968: 37)
No âmbito das atividades do Centro de Estudos de Etnologia Peninsular são também de salientar os estudos de comunidade realizados por Jorge Dias , como o que deu origem ao livro Rio de Onor: comunitarismo agro-pastoril (DIAS, 1953), ou à edição de Vilarinho da Furna: uma aldeia comunitária (DIAS, 1948), baseada na sua tese de doutoramento, realizada na Alemanha.
Em ambos os estudos Jorge Dias assinalou o forte comunitarismo, de feição pré-capitalista, das duas sociedades de montanha, acentuando a natureza solidária, democrática e fraterna das suas gentes, num claro contraste com a competição, conflito e individualismo inerentes ao mundo urbano. Com o tempo, a sua interpretação da realidade das aldeias foi alvo de algumas críticas, sendo cunhada de idealista, nostálgica ou pastoral por ulteriores antropólogos (BRITO, 1996; LEAL, 2006).
Foi a partir principalmente do estudo de Vilarinho da Furna que Jorge Dias tentou definir uma suposta personalidade base dos portugueses, na esteira, aliás, de uma tradição oriunda do romantismo que via no campesinato o, «(...) fiel depositário das tradições nacionais mais autênticas, pela ausência de exposição ao que vinha de fora.» (SOBRAL, 2011: 4), assim inaugurando um outro tipo de temática debatida no âmbito do Centro, os estudos acerca do carácter nacional, que Jorge Dias abordou no artigo Os elementos fundamentais da cultura portuguesa (DIAS, 1990).
A CARREIRA DOCENTE DE JORGE DIAS
Paralelamente ao Centro de Estudos de Etnologia Peninsular, Jorge Dias deu início à carreira de professor em Portugal na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, onde lecionou a cadeira semestral de Etnologia de 1952 até 1956. Entretanto, leciona em 1954 um curso sobre Etnografia Portuguesa na Universidade do Estado do Paraná, na cidade de Curitiba, no âmbito da criação do Centro de Estudos Portugueses nessa universidade.
Em 1956 passa a ministrar, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, a cadeira de Etnologia, disciplina que, depois da reforma curricular ocorrida naquela instituição, é dividida em duas de âmbito anual: Etnologia Geral, a partir de 1957, e Etnologia Regional, a partir de 1958, ambas asseguradas por Jorge Dias. É também professor, ao mesmo tempo, no Instituto Superior de Estudos Ultramarinos, onde ministra as cadeiras de Antropologia Cultural e Instituições Regionais de 1956 até 1962. Em 1959 é professor convidado na Universidade de Witwatersrand, Joanesburgo, África do Sul, onde leciona a cadeira de Cultura Portuguesa.
A progressiva afirmação da antropologia cultural nos currículos académicos das universidades portuguesas é reflexo também do trabalho de Jorge Dias na definição de um objeto e de uma metodologia próprias para esta ciência, até então vivendo numa situação de dependência em relação à antropologia física. Finalmente, as equipas de investigadores que formou e orientou nas diversas instituições por onde passou, e os projetos de investigação que lançou, criaram uma escola em Portugal, ajudando a estabelecer «(...) a investigação etnológica e antropológica como uma categoria profissional qualificada.» (OLIVEIRA, 1976: 801)
OS MACONDES
A partir de 1956 e até 1960 Jorge Dias enceta uma série de viagens a Moçambique com o propósito de estudar os Macondes. Desta investigação resultaria a publicação, em colaboração com Margot Dias e Manuel Viegas Guerreiro, de uma monografia em 4 volumes sobre aquela sociedade tribal moçambicana, um trabalho marcante na história da antropologia portuguesa. O volume I, de autoria de Jorge Dias, foi dedicado aos Aspectos Históricos e Económicos, o volume II, Cultura Material, e o volume III, Vida Social e Ritual, são de autoria de Jorge Dias e Margot Dias. Finalmente, o quarto volume, da responsabilidade de Manuel Viegas Guerreira, é dedicado à Sabedoria, Língua, Literatura e Jogos.
Jorge Dias entre os Macondes. Imagem obtida através do artigo de João Leal "A energia da Antropologia: seis cartas de Jorge Dias para Ernesto Veiga de Oliveira" |
É no contexto das grandes mudanças provocadas pelo processo de descolonização ocorrido em diversos países africanos, aliás, que Jorge Dias parte para o estudo dos Macondes. O projeto nasce no âmbito de uma série de estudos patrocinados pelo Estado Novo e dirigidos pelo Centro de Estudos Políticos e Sociais da Junta de Investigações do Ultramar.
Numa época de grande conflitualidade no continente africano, e em vésperas de se iniciarem as guerras coloniais portuguesas, o regime mostrava-se preocupado em estudar as comunidades ultramarinas, as suas crenças, motivações e valores, o seu posicionamento político e atitudes perante a metrópole, servindo-se para isso, entre outros, dos estudos de natureza antropológicos.
Margot Dias com os Macondes. Foto de Jorge Dias pertencente ao Arquivo do Museu Nacional de Etnologia. |
A Jorge Dias coube dirigir uma das missões do Centro de Estudos Políticos e Sociais, precisamente a Missão de Estudos das Minorias Étnicas do Ultramar Português, no âmbito da qual se realizou o estudo dos Macondes. Paralelamente ao estudo etnográfico e etnológico, Jorge Dias estava incumbido de analisar a situação política e social daquela comunidade no contexto da salvaguarda da administração colonial portuguesa.
Jorge Dias parte para o terreno convencido das virtualidades do modelo colonial português, baseadas na tolerância, na fraternidade, na capacidade de assimilação e adaptação, numa perspetiva herdeira da noção luso-tropicalista veiculada por Gilberto Freyre, e explanadas por Jorge Dias no artigo A Expansão ultramarina portuguesa à luz da moderna Antropologia (DIAS, 1957).
Diríamos que, de forma ingénua, Jorge Dias acreditou na possibilidade de conciliar a existência do império colonial português com o respeito pelos modos de vida tradicionais dos indígenas e a ausência de segregação racial.
A imersão na realidade dos Macondes, contudo, levou o antropólogo a aperceber-se que o domínio português não era isento de arbitrariedades, racismo e prepotência, atitudes que denuncia numa série de relatórios confidenciais enviados para a metrópole, como revela o excerto aqui reproduzido relativo ao relatório da campanha de 1957,
«O branco habituou-se a considerar-se, de tal maneira, um ser superior, que não dá por nada destas coisas, nem mostra a mínima cortesia ao falar com pretos instruídos ou assimilados, nem muito menos pensa em estender-lhes a mão. Desta maneira vai-se cavando um abismo absolutamente desnecessário entre pretos e brancos, que me parece contrario às superiores directrizes estabelecidas pelos responsáveis» (PEREIRA, 2006: 5)
A honestidade e profundidade do seu trabalho levaram-no a identificar uma série de problemas na administração colonial portuguesa que precisavam de ser corrigidos, sob pena do fosso entre negros e brancos, e da conflitualidade política daí resultante, continuar a dilatar-se. Alertou então contra a sistemática descriminação social, política e económica das povoações nativas, cada vez mais insatisfeitas, inconformadas e conscientes do papel subalterno que lhes estava reservado e descontentes com as mudanças promovidas nos seus modos de vida seculares.
Como afirma o investigador Rui M. Pereira, «(...) ao atribuir à incorrecta aplicação dos preceitos coloniais portugueses, aos maus tratos sociais, económicos e políticos infligidos às populações locais, à alteração fundamental no direito consuetudinário da propriedade, à emigração, à ocupação dos solos pelas grandes companhias agrícolas e à prática administrativa colonial portuguesa, a responsabilidade pela instabilidade e descontentamento social e político predominante no Planalto, Jorge Dias punha em exercício um conjunto de variáveis até então nunca admitidas e correlacionadas no âmbito «oficial» das ciências sociais portuguesas.» (PEREIRA, 1998: XLVII)
A imersão no terreno fez soçobrar a sua visão romântica e idealista da colonização portuguesa, matizando inegavelmente o seu entusiasmo e crença na excecionalidade do seu processo colonizador, tendo chegado, inclusive, a reputar como superior o modelo colonial inglês, como se pode observar no relatório da campanha de 1959,
«(...) nós continuamos a ouvir sempre repetir que os indígenas gostam mais dos portugueses que dos ingleses, porque os tratamos com mais humanidade e nos interessamos pela vida deles. E esta história vai-se repetindo, como certos erros que passam de uns manuais para os outros, porque os autores em vez de procurarem verificar a exactidão das afirmações, acham mais cómodo repetir aquilo que outros disseram. Já noutro relatório dissemos que alguns Macondes nos confessaram ter mais admiração pelos ingleses do que por nós, estabelecendo confronto entre o tratamento dado por nós e pelos ingleses no Tanganhica. Confesso que na ocasião registámos o facto mas não o tínhamos compreendido bem. Só agora, depois de termos feito esta excursão pelo Tanganhica, a situação nos parece clara e de certo modo alarmante» (PEREIRA, 2006: 4)
Esta capacidade de evoluir no pensamento, perante as informações recolhidas no terreno, é sem dúvida testemunha da sua humildade científica. Mas se é certo que Jorge Dias identificou e relacionou de forma inovadora uma série de problemas associados à prática colonial portuguesa, nunca foi capaz de extrair a conclusão final de toda a sua argumentação, ou seja, a defesa do fim da colonização enquanto projeto de dominação política e simbólica de uma cultura em relação a outra, sendo este o aspeto mais contraditório do seu percurso enquanto cientista social.
FUNDADOR DO MUSEU DE ETNOLOGIA DO ULTRAMAR
Para além do relevante papel enquanto investigador, Jorge Dias foi também uma personalidade deveras importante no campo museológico. Aproveitando a recolha etnográfica que vinha sendo realizada junto dos Macondes, Jorge Dias inaugura em 1959 a exposição, Vida e Arte do Povo Maconde, nas instalações do Serviço Nacional de Informação.
Esta exposição funcionou como uma espécie de embrião da criação, anos mais tarde, do Museu de Etnologia do Ultramar (antecessor do atual Museu Nacional de Etnologia), cuja direção coube a Jorge Dias, o responsável pela criação da Missão Organizadora do Museu, assim como do Centro de Estudos de Antropologia Cultural, em 1962, que funcionou como um pólo de investigação de apoio ao futuro museu, inaugurado formalmente em 1965.
Apesar de nomeado de Museu de Etnologia do Ultramar, Jorge Dias batalhou sempre para que também o povo da metrópole pudesse estar representado naquela instituição, uma intenção difícil de justificar perante as autoridades do Estado Novo, defensoras de que o museu se debruçasse unicamente sobre os povos indígenas das colónias, funcionando assim como uma espécie de Museu Colonial que desse testemunho da expansão ultramarina portuguesa.
Apesar das resistências, Jorge Dias conseguiu inaugurar em 1968 a exposição Alfaia Agrícola Portuguesa, com as peças recolhidas por Ernesto Veiga de Oliveira e Benjamim Enes Pereira entre os anos de 1962 e 1968. A mostra realizou-se no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas Ultramarinas (Palácio Burnay) e, com ela, o povo português,
«(...) entrava finalmente no Museu. (...) Com ela, o povo sentou-se finalmente na primeira fila do espaço - povoado de vitrinas, de jogos de luz e de sombra, de legendas, catálogos e fotografias - de um Museu nacional português. (...) Embora fosse também um povo artístico (...) era sobretudo um povo tecnológico: um povo de arados e abrigos pastoris de montanha, de teares e cangas de boi, de enxadas e trilhos. Em suma, um povo documentado sobretudo naquilo que na sua cultura testemunha de uma ligação material à terra. Finalmente instalado no Museu, esse povo (...) fazia-o - ironicamente - no momento preciso em que essa cultura começava a entrar em declínio» (LEAL, 2011: 104)
Em 1972, um ano antes da morte de Jorge Dias, é inaugurada uma outra grande exposição promovida pelo Museu de Etnologia do Ultramar, intitulada Povos e Culturas, desta feita realizada na Galeria de Arte Moderna, em Belém. Formada por 600 peças representativas de culturas de países tão diversos como o Brasil, o Sudão, a Guiné, a Serra Leoa, a Costa do Marfim, a Nigéria, o Gabão, o Congo, assim como de países então pertencentes ao ultramar português, como Moçambique, Macau, Cabo Verde, Timor e Angola, a exposição atingiu um significativo sucesso tendo sendo visitada por cerca de 30 mil pessoas.
Jorge Dias morreu em 1973, pouco tempo antes de se iniciarem as obras que finalmente iriam dar uma casa ao museu, até aí sem local próprio para expor. Foi então substituído na direção pelo seu amigo Ernesto Veiga de Oliveira, que assim assistiu à inauguração, em 1975, do agora denominado Museu de Etnologia.
Ao longo da sua carreira Jorge Dias publicou mais de 150 artigos e obras. O reconhecimento da qualidade do seu trabalho pelo seus pares valeram-lhe diversas nomeações prestigiantes a nível internacional, como o assento na Comissão Internacional das Artes e Tradições Populares assim como no primeiro conselho editorial da revista Ethnologia Europaea.
JORGE DIAS EM LAVADORES
Segundo os registos consultados no Arquivo Municipal de Gaia, tudo leva a crer que Jorge Dias tenha comprado a sua casa de Lavadores, situada no gaveto entre a rua do Thom e a Rua da Estamparia de Lavadores, em 1945, ano em que pede licença à Câmara Municipal para caiar e pintar o referido prédio (AMSMB, Processo de Pequenas Obras em Nome de António Jorge Dias, 1945). O ano coincide com a época da sua docência em Santiago de Compostela (1944-46), sendo a casa frequentada então principalmente nos meses de Verão, durante as férias. Com o regresso definitivo a Portugal, em 1947, Jorge Dias passa a residir em Lavadores de forma permanente.
Aspecto actual da casa onde Jorge Dias viveu em Lavadores |
A casa de Jorge Dias foi originalmente construída pelos Thom, uma família de origem escocesa, residente em Gaia, que a deveria utilizar de forma mais assídua na época balnear. Não sabemos ao certo a data da sua construção. Em 1913, contudo, um tal de Robert Fulton Thom solicita à autarquia gaiense licença para realizar profundas obras de remodelação do prédio, ampliando-o significativamente, aproximando-se assim da sua configuração atual. (AMSMB, Processo de Obras Particulares em Nome de Robert F. Thom, 1913) É por causa desta família britânica, aliás, que a rua que vai da casa até à praia é designada de Rua do Thom (anteriormente designada como Avenida do Thom).
Jorge Dias gostava de reunir na sua casa de Lavadores uma série de amigos e artistas, como Ernesto Veiga de Oliveira, Fernando Galhano, Eugénio de Andrade, Agustina Bessa-Luís, Orlando Ribeiro ou Miguel Torga, com os quais realizava animadas tertúlias. Miguel Torga, aliás, escreveu alguns poemas do seu diário em Lavadores, distribuídos entre os anos de 1945 e 1946. Em 1945 concebeu os poemas Nirvana (23 de Março de 1945) e Pergunta (17 de Julho de 1945). Em 11 de Agosto de 1946 escreveu Condição e em 14 de Agosto do mesmo ano Ode. Isto para além de outras entradas no seu diário também redigidas nesse mesmo local.
Pormenor da casa onde viveu Jorge Dias em Lavadores |
Na fotobiografia de Miguel Torga, da autoria de sua filha, Clara Rocha, é possível ver um retrato que testemunha a amizade entre Jorge Dias e Miguel Torga. Foi tirada aquando de um passeio à Serra Amarela e nela estão presentes Jorge Dias, Margot Dias, Miguel Torga e sua mulher, Andrée Crabbé (ROCHA, 2000).
Esta imagem, em particular, foi obtida no site da Livraria Trindade |
A escolha de Lavadores como local de residência poderá ter estado intimamente relacionada com o fascínio que Jorge Dias sentia pelo mar. Numa carta dirigia ao seu amigo Fernando Galhano, em 1937, dizia, «Eis-me de novo embalado pela melodia das ondas, que ora se roçam pela areia, ora se despedaçam contra a negrura das rochas (...) Agora o meu sonho é o mar.» (CÂMARA MUNICIPAL DO PORTO, 2004: 43)
O oceano fez parte inclusive dos seus estudos, sendo o autor de uma Antologia da lírica portuguesa contemporânea (DIAS, 1947), onde refere a importância do mar e da sua «nostálgica magia» para a produção poética de diversos autores portugueses, como Florbela Espanca, Teixeira de Pascoaes, Guerra Junqueiro, Miguel Torga, António Nobre ou Mário de Sá Carneiro.
Para além da proximidade ao mar, Lavadores era, em meados do século passado, um lugar inóspito e algo isolado, bem ao gosto bucólico de Jorge Dias, o que lhe permitia conciliar o seu desejo espiritual de natureza com a necessidade de trabalhar na cidade do Porto.
Fernando Galhano, pintor e amigo de longa data de Jorge Dias, e autor de diversos estudos no âmbito do Centro de Estudos de Etnologia Peninsular, onde a qualidade do seu desenho técnico sobressaía, foi também viver para Lavadores, depois de se casar com Gerda Pfuderer, alemã que veio para Portugal em 1949 para cuidar dos filhos de Jorge e Margot Dias.
Habitaram numa casa, situada na esquina entre a rua do Calisto e a atual rua Jorge Dias, que se notabilizava por uma bonita e antiga Araucária. Aliás, mais tarde a casa foi ocupada pelo restaurante "Araucária", que preservou o exemplar que lhe dava o nome. Infelizmente hoje a casa já não existe, derribada para a edificação de um prédio de habitação.
Em 1952 Jorge Dias começa a lecionar uma cadeira semestral na Universidade de Coimbra, espaçando as suas vindas a Lavadores. Em 1954 ou 1955 a casa passa a ser habitada por Isabel Maria de Almeida Dias, um dos três filhos do seu primeiro casamento com Madalena Lima de Almeida Dias (Jorge Dias teria outros 3 filhos com a sua segunda esposa, Margot Dias). A casa foi pertença dos descendentes de Jorge Dias até 2011, ano em que foi vendida. O último descendente de Jorge Dias a habitar a casa foi a Eng.ª Rita Pestana, sua bisneta e filha da Dr.ª Isabel Pestana.
Ainda na década de 70 do século passado, e em jeito de homenagem, a autarquia gaiense concedeu o nome de Jorge Dias à rua de Lavadores que corre paralela à Av. Beira-Mar, e que é confrontada atualmente pela rua das Galés, a sul, e, pela rua do Calisto, a norte.
Pormenor da Rua Jorge Dias |
Fontes Arquivísticas:
Arquivo Municipal Sophia de Mello Breyner (AMSMB) - Processo de Pequenas Obras em Nome de António Jorge Dias, 1945. Disponível em <http://arquivo.cm-gaia.pt/units-of-description/documents/89751/?q=jorge+dias> [acesso em Janeiro de 2017].
Arquivo Municipal Sophia de Mello Breyner (AMSMB) - Processo de Obras Particulares em Nome de Robert F. Thom, 1913. Disponível em <http://arquivo.cm-gaia.pt/units-of-description/documents/72842/?q=thom> [acesso em Janeiro de 2017].
Fontes Impressas:
BRITO, Joaquim Pais de, 1996 - Retrato de Aldeia com Espelho: Ensaio Sobre Rio de Onor. Lisboa: Dom Quixote. (Colecção Portugal de Perto; nº 34)
CÂMARA MUNICIPAL DO PORTO, 2004 - Homenagem a Fernando Galhano: 1904-1995). Porto: C.M.P.
DIAS, Jorge, 1947 - Antologia da Lírica Portuguesa Contemporânea. Santiago de Compostela: Universidade de Santiago de Compostela.
DIAS, Jorge, 1948 - Vilarinho da Furna: uma aldeia comunitária. Porto: Instituto para a Alta Cultura. Cancioneiro de Margot Dias, Desenhos de Fernando Galhano, Introdução de Orlando Ribeiro.
DIAS, Jorge, 1953 - Rio de Onor: Comunitarismo Agro-Pastoril. Porto: Instituto de Alta Cultura. Cancioneiro de Margot Dias, Desenhos de Fernando Galhano.
DIAS, Jorge, 1957 - «A Expansão Ultramarina Portuguesa à Luz da Moderna Antropologia». Boletim Geral do Ultramar. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, vol. 33, nº 382, p. 55-74.
DIAS, Jorge, 1990 - «O Que se Entende por Antropologia Cultural», in DIAS, Jorge - Estudos de Antropologia. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, vol. I, p. 13-35. A edição original deste texto é de 1959.
DIAS, Jorge, 1990 - «A Etnografia Como Ciência», in DIAS, Jorge - Estudos de Antropologia. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, vol. I, p. 37-47. A edição original deste texto é de 1963.
DIAS, Jorge, 1990 - «Paralelismo de Processo na Formação das Nações». in DIAS, Jorge - Estudos de Antropologia. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, vol. I, p. 119-133. A edição original deste texto é de 1956.
DIAS, Jorge, 1990 - «Os Elementos Fundamentais da Cultura Portuguesa», in DIAS, Jorge - Estudos de Antropologia. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, vol. I, p. 135-157. A edição original deste texto é de 1950.
DIAS, Jorge, 1993 - «Acerca do Atlas Etnográfico de Portugal», in DIAS, Jorge - Estudos de Antropologia. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, vol. II, p. 11-18. A edição original deste texto é de 1948.
LEAL, João, 2006 - Antropologia em Portugal: Mestres, Percursos, Transições. Lisboa: Livros Horizonte.
LEAL, João, 2008 - «A Energia da Antropologia: Seis Cartas de Jorge Dias para Ernesto Veiga de Oliveira». Etnográfica: Revista do Centro em Rede de Investigação em Antropologia. Lisboa: CRIA, vol. 12, nº2, p. 503-521.
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