A Seca do Bacalhau de Lavadores

Nota: no post anterior faz-se uma breve introdução à história da pesca e do consumo de bacalhau em Portugal, importante contextualização para o artigo que se segue.

O primeiro documento que encontramos relativo à existência de uma seca de bacalhau em Lavadores data de 1937, ano em que a Empresa de Pesca de Bacalhau do Porto, Lda. solicita à Camara Municipal de Gaia autorização para construir nos seus terrenos, em Lavadores, um secadouro de bacalhau composto pelos seguintes edificios: armazéns para peixe seco e verde, dormitório para o seu pessoal feminino, refeitório, balneário, escritório, 6 pias para a lavagem do bacalhau, arrumos e outras instalações consideradas necessárias. O documento pode ser consultado no seguinte link do Arquivo Municipal de Gaia. (Arquivo Municipal de Gaia: Processo de obras particulares em nome de Empresa de Pesca de Bacalhau do Porto, Lda,1937)



O secadouro da Empresa de Pesca de Bacalhau do Porto funcionava nos terrenos a poente da actual Rua da Seca do Bacalhau. (Arquivo Municipal de GaiaProcesso de obras particulares em nome da Sociedade Nacional dos Armadores de Bacalhau, 1940)


Neste secadouro distinguiam-se os dois grandes armazéns construídos então, um para o peixe seco (o chamado armazém sul, que se encontrava praticamente encostado á Rua do Calisto), e outro para o peixe verde (designado por armazém norte e que se encontrava encostado ao caminho público que então se dirigia para a Afurada, muito perto da actual Rua da Seca do Bacalhau) 



A actual Rua da Seca do Bacalhau





Imagem actual do terreno poente da antiga seca do bacalhau de  Lavadores, a chamada seca antiga.


Por sua vez, no relatório e contas de 1941 (SNAB, 1942) a SNAB refere que é também proprietária de uma seca em Lavadores. Poucos anos mais tarde, em 1944, a SNAB amplia as suas instalações adquirindo o secadouro da Empresa de Pesca de Lavadores, "(...) de forma a obtermos a capacidade de secagem necessária para o aumento da pesca que resultará da nova construção de navios."  (SNAB, 1944: 6)



Placa comemorativa erguida pela SNAB em 1957 onde figura um Lugre. Nela pode-se ler a seguinte inscrição, "Deus quer, o homem sonha, a obra nasce. A todos os que a esta obra deram o melhor do seu esforço." Originalmente esta placa encontrava-se embutida na parede de alvenaria que rematava o armazém de secagem artificial desenhada pelo arquitecto Brito e Cunha.


Não sabemos ao certo como decorreu esta expansão, ou seja, quais eram os terrenos de que a SNAB era dona em 1941 e para os quais se expandiu em 1944.  O mais provável é que no terreno da seca, que mais tarde estaria integralmente na posse da SNAB, funcionavam no início dos anos 40 duas secas distintas, ou seja, na posse de duas empresas diferentes, divididas por um caminho público que seguia de muito perto o traçado da actual Rua da Seca do Bacalhau. A poente desse caminho ficava situado o secadouro da Empresa de Pesca de Bacalhau do Porto, como vimos, e a nascente o da Empresa de Pesca de Lavadores.

Parece-nos, assim, que a SNAB adquiriu primeiro o secadouro da Empresa de Pesca de Bacalhau do Porto, em 1940 ou em 1941, e só mais tarde, em 1944, adquiriu a seca pertencente à Empresa de Pesca de Lavadores. Independentemente destas dúvidas, sabemos ao certo que em 1944 a SNAB já era proprietária destes dois secadouros e dos seus respectivos 15 hectares. 



"Mesas" carregadas de bacalhau a secar junto ao armazém sul da ala poente da seca de lavadores. Imagem obtida no site do Arquivo Municipal de Gaia. (Arquivo Municipal de Gaia: Instalações da SNAB, 1948)

Tomando posse daquelas duas unidades industriais levantava-se agora um problema prático à SNAB. É que, como referimos atrás, existia um antigo caminho público que se dirigia à Afurada e que dividia a meio o terreno, agora integralmente nas mãos da SNAB. Se antigamente aquele caminho servia para dividir claramente dois secadouros diferentes, agora roubava espaço precioso à SNAB, interessada em unificar o conjunto. 

O problema vai ser resolvido através de uma permuta de terrenos com a Câmara Municipal de Gaia, efetuada no ano de 1948. Neste contrato, a SNAB passa para o município de Gaia parcelas de terrenos que tinha contíguas à seca do bacalhau, como a totalidade da parte ponte da Rua do Calisto e pedaços de terrenos que detinha junto ao mar e que contornava a linha costeira, enquanto a câmara cedia à SNAB aquele antigo caminho que causava uma descontinuidade no secadouro. Com os terrenos cedidos pela SNAB foi possível construir a estrada marginal que passou a contornar a seca. 

O processo de permuta pode ser consultado através da seguinte ligação do Arquivo Municipal de Gaia(Arquivo Municipal de Gaia: Processo administrativo de troca de terrenos entre a CMG e a Sociedade Nacional de Armadores de Bacalhau, 1948)



Imagem do plano de permuta de terrenos entre a SNAB e a Câmara de Gaia


Nesse mesmo documento a SNAB faz referência que já no passado havia adquirido os terrenos e um edifício onde funcionava a Estação Radiogoniométrica da Marinha (que havia sido instalada no local em 1925).
Esse edifício, mais tarde designado como casa do comando, seria ocupado pelo capitão da seca, o responsável máximo por aquela unidade industrial.



A estação radiogoniométrica da Marinha, mais tarde adquirida pela SNAB e transformada na Casa do Comando do capitão da seca do bacalhau. Imagem retirada do site do Espólio Fotográfico Português



A casa do comando em 1955. (Arquivo Municipal de GaiaVisita às instalações da SNAB, 1955)



O mesmo edifício em 2012, já em ruínas. Foto de Jorge Rêgo.


Na década de 50, e a par com o crescimento da quota de mercado do bacalhau nacional, a seca de Lavadores continua a desenvolver-se de forma sustentada, não apenas em termos do seu equipamento industrial como também nas respostas sociais que oferece aos seus funcionários. 
Assim, entram em funcionamento naquela década novos edifícios como os 2 vestiários para mulheres, o refeitório (dividido entre 1 refeitório para homens e outros para mulheres, com uma cozinha a meio), o posto médico (localizado no mesmo edifício do refeitório e onde veio a trabalhar o Dr. Serrano), novos armazéns na ala nascente (um complexo norte, onde estaria localizada a unidade de secagem artificial e 4 armazéns frigoríficos, e um armazém sul, para depósito de peixe seco), um pórtico de entrada, uma torre para funcionar como depósito de água (que ainda hoje existe), assim como uma creche, composta por rés-do-chão e cave, para os filhos das funcionárias. 

O processo documental na origem destas construções tem início em 1948, com a apresentação do ante-projecto de arquitectura (Arquivo Municipal de Gaia - Processo de obras particulares em nome da Sociedade Nacional dos Armadores de Bacalhau, 1948)  e estende-se até 1958 (Arquivo Municipal de Gaia - Processo de obras particulares em nome da Sociedade Nacional dos Armadores de Bacalhau,1958). 

A verdade é que o ante-projecto de arquitectura apresentado à câmara em 1948 foi sofrendo várias alterações que não foram comunicadas ao município. Neste sentido, em 1958 a SNAB viu-se obrigada a apresentar um novo projecto de arquitectura de forma a regularizar os edifícios que haviam já sido construídos e que não estavam de acordo com o plano apresentado em 1948.

O arquitecto responsável pelo projecto de arquitectura foi António José de Brito e Cunha, licenciado pela Escola de Belas Artes de Paris, conforme se pode ver pela designação D.P.L.G. que acompanhava o seu nome (Diplômé par le gouvernement) e discípulo do mestre José Marques da Silva. Segundo a memória descritiva do projecto, "Todos os edifícios estão localizados e distribuídos de forma a satisfazerem ao mesmo tempo as exigências climatéricas indispensáveis à boa secagem do bacalhau e apresentarem um aspecto o mais agradável possível". (Arquivo Municipal de Gaia: Processo de obras particulares em nome da Sociedade Nacional dos Armadores de Bacalhau, 1958)

Dado tratar-se de um projecto de arquitectura industrial, o critério da eficiência não podia estar ausente do desenho dos edifícios. O mérito de António José de Brito e Cunha, contudo, esteve em conseguir aliar as preocupações utilitárias dos donos da obra com a  beleza estética do que foi projectado, conseguindo no fim alcançar uma coerência e uma unidade que perpassa todo o conjunto de edifícios. 

Essa unidade é visível, por exemplo, na adopção de soluções similares para os diferentes edifícios, como as janelas circulares, ou o jogo estabelecido entre as alvenaria de granito e as paredes de cimento caiadas de branco, visível em praticamente todos os edifícios, ou ainda nas palas sustentadas por pilares que se encontravam nas portas dos edifícios.  


A creche 


Neste mapa é possível observar-se a disposição de todos os armazéns e valências da seca de Lavadores, como demonstrados num documento da SNAB de 1958. A vermelho encontra-se a creche. (Arquivo Municipal de Gaia: Processo de Obras particulares em nome da Sociedade Nacional dos Armadores de Bacalhau, 1958)


Antes da creche que seria construída nos anos 50 pela SNAB já existia um outro edifício com as mesmas funções no terreno da ala poente. Essa creche existia pelo menos desde 1949, segundo nos informou o Sr. Fernando Santos, que a frequentou entre 1949 e 1952. 

A nova creche, e segundo algumas fotografias que podemos consultar no Arquivo Municipal de Gaia, deverá ter sido inaugurada já na segunda metade da década de 50. O r/c da nova creche, e como se pode ver pela imagem seguinte, era composto por sala de espera, posto médico e cantina; dormitório, mamadeiras, gabinete de enfermeira, vestiários e limpeza de bebés; sala de jogos, repouso, arrumos e instalações sanitárias; refeitório, copa, cozinha e dispensa. 



(Arquivo Municipal de Gaia: Processo de Obras particulares em nome da Sociedade Nacional dos Armadores de Bacalhau, 1958)


A cave, por sua vez, era formada por quarto de isolamento, lavandaria, sala de costura, arrumos e instalações sanitárias de enfermeiras.



(Arquivo Municipal de Gaia: Processo de Obras particulares em nome da Sociedade Nacional dos Armadores de Bacalhau, 1958)




O alçado norte da creche, um edifício que já não existe. (Arquivo Municipal de Gaia: Processo de Obras particulares em nome da Sociedade Nacional dos Armadores de Bacalhau, 1958)




O alçado poente da creche. (Arquivo Municipal de Gaia: Processo de Obras particulares em nome da Sociedade Nacional dos Armadores de Bacalhau, 1958)




Esta era a vista da creche a partir de quem entrava no portão da seca. (Arquivo Municipal de Gaia, Processo de obras particulares em nome da Sociedade Nacional de Armadores de Bacalhau, 1958)




Vestiários, refeitório e posto médico


A vermelho encontra-se a localização do refeitório, do vestiário das mulheres e do alpendre que ligava esse último edifício à portaria. Estes edifícios ainda hoje existem. (Arquivo Municipal de Gaia: Processo de Obras particulares em nome da Sociedade Nacional dos Armadores de Bacalhau, 1958)




Aspecto actual do antigo refeitório da seca do bacalhau. Neste edifício funcionava também  o posto médico, para além de uma enfermaria.





Perspectiva de um dos vestiários femininos. O alpendre ligava ao segundo vestiário que ficava no mesmo edifício ocupado pela portaria e pela central telefónica.





Outra perspectiva dos dois blocos de vestiário ligados pelo alpendre. Estes edifícios formam hoje o núcleo do Centro Paroquial de Canidelo







Alçado norte de um dos vestiários e do alpendre




O armazém sul




A vermelho a localização do armazém sul, edifício ainda hoje existente. (Arquivo Municipal de Gaia: Processo de obras particulares em nome da Sociedade Nacional dos Armadores de Bacalhau, 1958)


Aspecto actual do armazém sul da ala nascente da seca do bacalhau. Neste armazém era colocado o bacalhau já seco, pronto a ser embalado. Repare-se no pormenor das palas, seguras por duas colunas, por cima de cada uma das entradas do armazém, um dos elementos distintivos do trabalho do arquitecto Brito e Cunha.



Perto do armazém sul e dos vestiários ficava localizado o portão de entrada da seca



Seca artificial e frigoríficos


A vermelho o bloco de edifícios compostos pelo armazém da seca artificial e as câmaras frigoríficas. O ponto vermelho ao lado diz respeito à torre do depósito de água. No sentido poente, e quase encostado a esse conjunto, é possível vislumbrar-se a casa do capitão da seca. O rectângulo ao lado sinaliza a piscina que então ali existia. (Arquivo Municipal de Gaia: Processo de Obras particulares em nome da Sociedade Nacional dos Armadores de Bacalhau, 1958)



Alçado norte de um dos edifícios, deitado abaixo, do complexo norte da ala nascente. Observe-se, mais uma vez, o jogo estabelecido entre as paredes caiadas de branco e a alvenaria de pedra. À frente deste edifício seria construído, nos anos 70, mais um armazém de secagem artificial, baseado numa nova tecnologia. (Arquivo Municipal de Gaia: Processo de Obras particulares em nome da Sociedade Nacional dos Armadores de Bacalhau, 1958)










Junto á torre do depósito de água é possível observar-se a localização do complexo norte da ala nascente da seca, onde se encontravam o armazém de secagem artificial e as câmaras frigoríficas. O primeiro edifício  (mais a norte) foi construído, porém, já nos anos 70, e não pertence ao projecto original do arquitecto Brito e Cunha. É ainda possível ver, junto a esse complexo, a Casa do Comando. Imagem obtida no site Geocaching




Um dos armazéns, já deitado abaixo, que fazia parte do complexo norte da ala nascente da seca do bacalhau de Lavadores. Fotografia de Jorge Rêgo.





Aspecto actual do depósito de água da seca do bacalhau. 


Em 1953 é inaugurada a cabine elétrica da seca de Lavadores, permitindo a entrada em funcionamento, no mesmo ano, das primeiras instalações de secagem artificial e das câmaras frigoríficas, equipamentos que vão revolucionar o processo de secagem, até então realizado apenas com recurso à luz solar e ao vento. (SNAB, 1954)



Imagem de um dos equipamentos da cabine eléctrica da seca do bacalhau de Lavadores. (Arquivo Municipal de Gaia: Inauguração da Cabine eléctrica da SNAB, 1953)

As fotografias da inauguração da cabine eléctrica podem ser consultadas neste link do Arquivo Municipal de Gaia. 

Fruto do fulgor económico e do prestígio adquirido até então, a seca de Lavadores iria albergar em 1957 o Congresso dos Armadores de Pesca de Bacalhau, um encontro muito bem documentado e cujas fotografias podem ser consultadas no site do Arquivo Municipal de Gaia.



Junto à casa do comando e dos armazéns norte da ala nascente existia uma piscina, aqui bem documentada durante o Congresso dos armadores de pesca de bacalhau que se realizou na seca de Lavadores em 1957. (Arquivo Municipal de Gaia: Congresso dos armadores de pesca de bacalhau nas instalações da SNAB, 1957)


A capela 


Em 1959, a SNAB iria iniciar o processo que iria levar à construção da capela de Lavadores. A missa começava geralmente às 9 da manhã, altura em que as funcionárias interrompiam a sua laboração para darem início ao seu ritual religioso.



Aspecto actual da capela de Lavadores, mandada construir pela SNAB. Repara-se como o edifício se insere perfeitamente na linguagem arquitectónica dos edifícios industriais da seca do bacalhau. Para além disso, é evidente a semelhança entre o muro de pedra da igreja e as velas dos lugres, os barcos onde se rumava para a pesca do bacalhau.

Juntamente com os cuidados de saúde internos, o refeitório e a creche, a capela iria concluir o programa social que a SNAB havia visualisado para a seca de Lavadores, oferecendo assim às suas funcionárias um conjunto de respostas sociais que facilitavam a sua permanência no local pelo maior tempo possível.
É de salientar, aliás, que algumas das mulheres que trabalhavam na seca de Lavadores não eram originárias da zona. Segundo nos informou a D. Domingas, muitas deslocavam-se para Lavadores desde o concelho de Ovar, a partir de locais como Arada e Maceda, passando as noites nos dormitórios da seca. Nesse sentido, equipamentos sociais como os que foram construídos no secadouro davam resposta às necessidades materiais mas também espirituais dos seus trabalhadores, reduzindo ao mínimo indispensável as suas ausências da unidade industrial. 
Com a construção da capela encerra-se o período de maior fulgor desta unidade industrial. A década de 60 é já um periodo temporal marcado fortemente pela crise, tanto de capturas de bacalhau como de recrutamento de mão-de-obra, que se reflectem negativamente nos contas da SNAB. 
Apesar desse contexto, em 1972 a SNAB ainda inaugura um novo armazém de secagem artificial, baseado numa nova tecnologia de patente nacional, assim como mais uma câmara frigorífica. Estes edifícios, porém, e ao contrário dos anteriores, não são da responsabilidade do arquitecto Brito e Cunha. 




O último edifício construído na antiga seca do bacalhau de Lavadores foi um novo armazém de secagem baseado numa nova tecnologia. Este edifício foi construído à frente do anterior armazém de secagem artificial. (Arquivo Municipal de Gaia: Processo de obras particulares em nome da Sociedade Nacional dos Armadores de Bacalhau, 1970)



Neste mapa é possível observar-se a zona de implantação do novo armazém de secagem artificial (letra C) e o novo frigorífico (letra B). A escuro encontram-se os edifícios anteriores projectados pelo arquitecto Brito e Cunha. (Arquivo Municipal de Gaia: Processo de obras particulares em nome da Sociedade Nacional dos Armadores de Bacalhau, 1970)

Na memória descritiva onde justifica perante a Câmara Municipal a necessidade da sua construção, a SNAB revela que, "(...) as dificuldades cada vez maiores na obtenção de mão de obra, aconselham a adopção da mecanização da secagem. Dentro deste espírito de ampliação de produção e de renovação dos processos técnicos a SNAB projectou uma instalação de secagem artificial anexa às instalações que actualmente possui em Lavadores - Vila Nova de Gaia. O processo tecnológico consiste na execução de túneis de grande secção para a passagem de ar onde o bacalhau é arrumado em tabuleiros através dos quais se faz passar uma corrente de ar com a temperatura e humidade requeridas a uma boa secagem. Além desta instalação e complementar dela prevê-se a construção de um grande armazém frigorífico".  

O documento pode ser consultado aqui. (Arquivo Municipal de Gaia - Processo de obras particulares em nome da Sociedade Nacional dos Armadores de Bacalhau, 1970)

Este último esforço de inovação tecnológica seria, no entanto, o verdadeiro canto do cisne da SNAB relativamente ao seu secadouro de Lavadores. 

Em 1979 a então primeira-ministra Maria de Lourdes Pintasilgo ainda iria fazer uma visita às instalações da SNAB em Lavadores. Existe no Arquivo Municipal de Gaia (AMG: Visita de Maria de Lourdes Pintasilgo às instalações da SNAB, 1979) uma série de fotografias que relatam essa mesma visita e que podem ser consultadas aqui

Os anos 80 iriam testemunhar, no entanto, o desmantelamento progressivo desta unidade industrial e o seu encerramento definitivo ocorreria já nos anos 90. Durante muitos anos as instalações estiveram ao abandono. Actualmente existe um projecto imobiliário para os terrenos antes ocupados pela seca. 



O projecto imobiliário previsto para os terrenos da antiga seca do bacalhau. Foto obtida no site  Casa Certa


Os edifícios onde antigamente funcionavam o refeitório, o posto médico, os vestiários, assim como a central telefónica e a portaria, albergam hoje o Centro Paroquial de Canidelo, obra que se fica a dever, em grande parte, ao Padre Almiro.



O edifício onde funcionava um dos vestiários femininos e a portaria é hoje parte integrante do Centro Paroquial de Canidelo



O painel de azulejos que decora um dos edifícios do Centro Paroquial de Canidelo






Pormenor do painel de azulejos



Placa comemorativa da inauguração da "Cidade de Deus e dos Homens", ou seja, do Centro Paroquial de Canidelo



Também o edifício do antigo refeitório faz parte do actual Centro Paroquial de Canidelo



A Secagem do bacalhau 

Para a realização deste artigo tivemos a sorte de poder contar com testemunhos preciosos de pessoas que conheceram a seca de bacalhau em plena laboração e que, desse modo, nos poderam explicar como era feita a secagem do bacalhau. Nesse sentido, merecem destaque, pela ajuda que nos deram, a Sr.ª. Rosária, a Sr.ª. Fernanda, a Sr.ª. Domingas e o Sr. Fernando Santos. As informações apresentadas de seguida baseiam-se, em grande parte, nos seus testemunhos.




A Sr.ª Rosário trabalhou na seca de Lavadores





A Sr.ª Fernanda também trabalhou na seca.



Sr.ª Domingas tinha vários familiares a trabalhar na seca de Lavadores




O Sr. Fernando frequentou a creche da seca do bacalhau de Lavadores entre os anos de 1949 e 1952.


Antes da utilização das câmaras frigoríficas e dos armazéns de secagem artificial, que começaram a entrar em funcionamento a partir dos anos 50 do século passado, a secagem do bacalhau era feita unicamente através da exposição do bacalhau ao sol e ao vento.
Todo o processo começava com a chegada dos navios com o bacalhau, já previamente escalado e salgado a bordo. Os barcos atracavam pouco depois da Ponte da Arrábida, do lado de V.N. Gaia, no chamado Cais da Arrozeira, junto à antiga Fábrica da Arrozeira Mercantil, perto do actual Cais do Cavaco, ou então no Cais de Gaia. 



Lugre motor "Oliveirense" da SNAB amarrado ao cais do Jones, em Gaia, a descarregar bacalhau para a seca de Lavadores. Imagem obtida no blog Navios à Vista

Cerca de 40 a 50 mulheres ajudavam então a descarregar o barco, acarretando o bacalhau à cabeça, colocado em cestos, até à camioneta que faria depois o transporte até Lavadores. Chegada à seca as mulheres repetiam o processo, descarregando o bacalhau da camioneta e colocando-o, empilhado, num armazém da unidade industrial. À cabeça, e por cada viagem, transportavam um peso que podia chegar aos 60 kg. Ao fim do dia estas mulheres queixavam-se frequentemente de dores na cabeça e no pescoço. 
O primeiro passo necessário para a transformação do bacalhau verde (conforme chegava dos barcos, apenas salgado) em seco consistia na sua lavagem. O facto é que o bacalhau chegava muito sujo, carregado de sal e com tripa que era preciso limpar.
Assim, o bacalhau era colocado em tinas de água onde era lavado e bem escovado com uma escova de arame. Havia sempre duas espécies de tinas, uma que ficava com a água suja depois da primeira lavagem, e outra tina onde era realizada uma lavagem final. 



Estado actual do que aparentam ser duas tinas onde se lavava o bacalhau


Só depois de bem lavado e escovado é que o bacalhau, transportado em carrinhos de mão com travessas de madeira, era colocado nas "mesas" a secar, ou seja, numa espécie de tabuleiros de arames suportados por esteios de pedra que formavam diversas fileiras.  



Esta foto e a seguinte não são da antiga seca de Lavadores. No entanto, as "mesas" aqui visualizadas são semelhantes às que eram lá usadas. Imagem obtida no blog Marintimidades


Repare-se, em primeira mão, os carrinhos de mão onde era feito o transporte do bacalhau no interior das secas. Na seca de Lavadores utilizavam-se carrinhos semelhantes. Imagem obtida no blog Marintimidades


Por cada fileira costumavam trabalhar duas mulheres que tinham por dever virar o bacalhau de um lado para o outro a intervalos regulares de forma a promover a sua secagem. 
Em termos meteorológicos o ideal era o tempo seco, não muito quente, com algum vento e baixa humidade relativa. A nortada, vento de quadrante norte típico desta zona, era boa para a secagem do bacalhau, razão pela qual, aliás, o terreno de Lavadores, bastante exposto, terá sido escolhido para a implantação desta seca.
As temperaturas moderadas da região eram favoráveis à eficaz secagem do bacalhau, já que o tempo muito quente, acima dos 26º graus, contribuíam para a ocorrência de alterações na massa muscular e na pele do bacalhau deixando-o "melado" ou mesmo "queimado" e inapropriado para consumo. (Mauricio Duppré - blog O Cardume) 
Nos dias de maior calor, portanto, era comum as mulheres estenderem o bacalhau nas "mesas" de manhã muito cedo para o levantarem por volta das 10 horas, tornando-o a estender ao fim da tarde.
Já a chuva e o nevoeiro, pela humidade que transportavam, estragavam o bacalhau, dificultando a sua desidratação, ou seja, a evaporação da água do peixe. 
"Por vezes deixava-se o peixe estendido durante a noite, se a humidade nocturna permitisse tal decisão. Entre o levantar e o estender, o peixe era empilhado um sobre o outro, repetindo-se o procedimento tantas vezes quantas as necessárias para se obter o grau de cura pretendido." (Mauricio Duppré, blog Cardume) 
É bom de ver, portanto, que o trabalho de secagem não tinha horas certas. As mulheres trabalhavam de acordo com a meteorologia e muitas vezes uma jornada de trabalho iniciava-se às 7 da manhã para terminar depois da meia-noite. Se fosse necessário levantar o bacalhau das "mesas" à noite não havia remédio senão fazê-lo. 
O processo de secagem natural podia assim demorar 1 mês, 15 dias ou uma semana, tudo dependia do clima e se este estava de feição para secagem, assim como do tipo de bacalhau em questão já que alguns, pelo seu tamanho e espessura, eram mais difíceis de secar, o que afectava seriamente o nível de previsibilidade de toda a operação. 
Trabalhar nas secas era fisicamente esgotante não apenas pela ausência de horários certos e pela inexistência de dias de folga mas também pelo desgaste que provocava nas mãos das trabalhadoras. 
O bacalhau verde chegava à seca bastante salgado provocando feridas na ponta dos dedos das trabalhadoras que o tinham que manusear. Dizia-se que o sal comia a pele dos dedos que ficavam completamente brancos. As mulheres diziam então que ficavam com os dedos como pintassilgosPara além disso, era frequente estas mulheres espetarem espinhas do peixe nas mãos, fazendo feridas com sangue. É fácil de imaginar a dor provocada pelo contacto do sal com estas feridas. 
O trabalho nas secas era temporário, iniciando-se por alturas de Outubro, com a chegada dos navios, e só terminando com a secagem completa de todo o stock pescado, normalmente por alturas de Abril. 
No resto do ano em que não trabalhavam na seca, as mulheres da zona tinham que se dedicar a outros trabalhos, como, por exemplo, a recolha de areia na praia, matéria prima que ia fornecer depois a indústria cimenteira. 
Algumas das empregadas da seca eram bastante novas e muitas começavam a trabalhar apenas com a 4ª classe concluída, ou nem isso. A mãe da D. Domingas, por exemplo, começou a trabalhar na seca aos 16 anos enquanto as suas tias teriam cerca de 14 anos, de forma a ajudarem a compor o orçamento familiar, bastante magro.
O salário da seca era baixo e as trabalhadoras, provenientes de meios humildes, conseguiam de vez em quando "desviar" alguns pedaços de bacalhau de forma a matar a fome da família.  Algumas trabalhadoras logravam colocar bocados de bacalhau nos canos do esgoto que levavam a água das tinas para o mar, onde aguardavam familiares para os recolher. 



Nesta e na fotografia seguinte é possível observar-se o esgoto que encaminhava as águas residuais para fora da seca do bacalhau





O trabalho das funcionárias na seca era vigiado de perto pelas apontadoras, mulheres encarregadas de apontar a quantidade de bacalhau que cada funcionária secava. Quem não secasse o nº de bacalhaus considerado adequado era chamada ao escritório e podia ser mandada embora.  

Por cima das apontadoras, em termos hierárquicos, estavam as encarregadas da seca. A seca antiga e a nova tinham encarregadas diferentes. Durante muito tempo a encarregada da antiga foi a D. Margarida e a da nova a D. Silvina. O responsável máximo por toda a seca de Lavadores era o chamado Capitão que habitava a casa do comando, edifício já desaparecido. 
Depois de seco o bacalhau era dividido pelas escolhideiras nas suas diversas categorias, que foram, aliás, se alterando conforme a legislação particular de cada época. Por exemplo, se entre 1934 e 1937 o bacalhau dividia-se entre Graúdo Especial, Graúdo, Crescido, Meão, Médio, Miúdo, Refugo de 1ª e Refugo de 2ª, já entre 1958 e e 1963 a divisão era feita entre Graúdo, Crescido, Corrente, Miúdo, Sortido de 2ª, Alecrim e Sortido de 3ª. 
O bacalhau era depois pesado numa balança e acondicionado dentro de sacos de sarapilheira (enfardados como se dizia), fechados com cozedura de agulha, segundo as suas categorias, para ser, finalmente, distribuido pelos importadores. 
Com o tempo, e como vimos atrás, foram sendo introduzidas inovações tecnológicas, como os frigoríficos e os armazéns de secagem artificial, tornando mais previsível todo o processo. 
Diga-se, no entanto, que o processo de secagem natural e o artificial conviveram sempre. Os armazéns dedicados à seca artificial, contudo, encontravam-se apenas no terreno nascente. As "mesas" onde o bacalhau era colocado a secar encontravam-se, porém, tanto na seca antiga como na nova.  




Nesta fotografia é possível constatar-se a simultaneidade do processo de secagem natural com a existência da secagem artificial (pavilhões ao fundo). Fonte: Arquivo Municipal de Gaia (Arquivo Municipal de Gaia: Visita às instalações da SNAB, 1955)






As mesas carregadas de bacalhau na ala nascente da seca de Lavadores. Fonte: Arquivo Municipal de Gaia (Arquivo Municipal de Gaia: Visita às instalações da SNAB, 1955)



Muitas vezes, e quando o tempo assim o permitia, o bacalhau era alvo de uma primeira secagem nas mesas para depois ir para os armazéns de secagem artificial levar uma secagem final. Nessas alturas as mulheres colocavam o bacalhau, alvo da primeira secagem, dentro dos carrinhos de mão, e transportavam-no assim para os armazéns de secagem artifical. Quando o bacalhau vinha da seca antiga as mulheres tinham que subir uma rampa inclinada de forma a vencer o desnível entre os dois terrenos. Era uma tarefa muito dura, como nos contou o Sr. Fernando Santos. 
A progressiva mecanização de todo o processo (visível sobretudo a partir da década de 70), no entanto, permitiu à SNAB depender menos de grandes contigentes de mão de obra, cada vez mais difícil de recrutar quer pela dureza do trabalho quer pelo aumento brutal da emigração ocorrido, por exemplo, nos anos 60 do século passado.  


Bibliografia

SOCIEDADE NACIONAL DOS ARMADORES DE BACALHAU - Relatório e contas de 1940. Lisboa: Papelaria Luso-Brasileira, 1941. [foram consultados todos os relatórios e contas entre os anos de 1940 a 1975]

Arquivo Municipal de Gaia - Processo de obras particulares em nome de Empresa de Pesca de Bacalhau do Porto, Lda, 1937 (https://arquivo.cm-gaia.pt/units-of-description/documents/73027/?q=empresa+de+pesca+de+bacalhau+do+porto)

Arquivo Municipal de Gaia - Processo de obras particulares em nome de Empresa de Pesca de Bacalhau do Porto, Lda, 1940 - (https://arquivo.cm-gaia.pt/units-of-description/documents/73054/?q=sociedade+nacional+armadores+bacalhau)

Arquivo Municipal de Gaia – Processo administrativo de troca de terrenos entre a CMG e a Sociedade Nacional de Armadores de Bacalhau, 1948 (https://arquivo.cm-gaia.pt/units-of-description/documents/47417/?q=sociedade+nacional+dos+armadores+de+bacalhau)

Arquivo Municipal de Gaia - Instalações da SNAB, 1948. (https://arquivo.cm-gaia.pt/units-of-description/documents/59572/)

Arquivo Municipal de Gaia - Inauguração da cabine eléctrica da SNAB, 1953. (https://arquivo.cm-gaia.pt/units-of-description/series/60226/q=sociedade+nacional+ armadores+bacalhau)

Arquivo Municipal de Gaia - Visita às instalações da SNAB, 1955. (https://arquivo.cm-gaia.pt/units-of-description/?q=sociedade+nacional+armadores+de+bacalhau&page=9)

Arquivo Municipal de Gaia - Congresso dos armadores de pesca de bacalhau nas instalações da SNAB, 1957. (https://arquivo.cm-gaia.pt/units-of-description/series/60737/)

Arquivo Municipal de Gaia – Processo de obras particulares em nome da Sociedade Nacional dos Armadores de Bacalhau, 1958 – (https://arquivo.cm-gaia.pt/units-of-description/documents/74489/?q=sociedade+nacional+dos+armadores+de+bacalhau)

Arquivo Municipal de Gaia – Processo de obras particulares em nome da Sociedade Nacional dos Armadores de Bacalhau, 1970 – (https://arquivo.cm-gaia.pt/units-of-description/documents/100508/?q=sociedade+nacional+dos+armadores+de+bacalhau)

Arquivo Municipal de Gaia - Visita de Maria de Lourdes Pintasilgo às instalações da SNAB, 1979. (arquivo.cm-gaia.pt/units-of-description/?creator=&q=visita+de+Maria+de+Lourdes+
Pintasilgo)


Mauricio Duppré - Blog O Cardume- (http://cardumebrasil.blogspot.com/2012/03/portugal-sobre-o-bacalhau-parte-2.html)

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